Pela segunda vez consecutiva a participação portuguesa na Bienal de Arquitetura de Veneza assume caráter experimental e, de certo modo, inovador. Em 2014 o país foi representado por Homeland: News From Portugal , que em vez de propor um pavilhão com localização geográfica precisa, consistiu em um jornal. Sim, um jornal. Notícias e informações sobre a arquitetura portuguesa contemporânea acompanhava as pessoas por onde elas fossem na Bienal de 2014, ampliando o alcance que se poderia esperar de um pavilhão.
Este ano, com o tema NEIGHBOURHOOD - Where Alvaro meets Aldo, Portugal celebra alguns projetos habitacionais de Álvaro Siza em cidades europeias, entre elas Veneza. Numa oportunidade ímpar de afirmar os valores e a cultura nacionais na mais importante mostra internacional de arquitetura, e como resposta ao desafio lançado por Alejandro Aravena, os dois curadores - Nuno Grande e Roberto Cremascoli - apresentam uma proposta inovadora que ocupa um lugar em plena construção física e social no seio da cidade de Veneza, na ilha da Giudecca: o conjunto Campo di Marte(1985), de Siza.
Apresentamos um relato dos curadores sobre seu primeiro debate com os moradores do conjunto, intitulado News from the Giudecca’s front e reproduzido a seguir na íntegra.
Chegamos por volta das 5h da tarde. A sala da Associação de Vizinhos da Giudecca estava quase lotada. Ali estavam pessoas de várias gerações e proveniências sociais e culturais. Um microcosmos da própria vizinhança...
A mesa começou a compor-se e cada um procurou cumprir o seu papel. O município deu as boas-vindas a todos, procurando explicar a nossa presença, perante várias caras de desconfiança. Do meio da multidão saiam vozes... “Vão contar-nos mais uma bela história?... “
O representante do ATER, promotor do Bairro de Habitação Social projectado por Álvaro Siza, há 20 anos, procurava dar a boa notícia... O bairro vai ser completado, novos vizinhos virão...
As caras denunciavam surpresa, entre contentamento e ironia.... “Já ouvimos histórias parecidas antes, o que mudou agora?”
Mudou a burocracia e reforçou-se a determinação do engenheiro Zanardi do ATER Venezia, coordenador do projecto, articulada com a intenção de Portugal de ali criar o seu Pavilhão para a Bienal de Arquitectura de 2016, num espaço vivo, no seio de uma obra em curso, estabelecendo uma relação entre o passado recente e o futuro próximo da Giudecca.
“Um pavilhão da Bienal? Na Giudecca? Sobre Portugal?...”
Carlos Moura-Carvalho, Director Geral das Artes, sossegou os presentes dizendo que Portugal tem uma relação ancestral de “vizinhança” com o mundo, e que a cultivará ao longo deste processo, evitando uma“guerras de vizinhos”. Portugal estará na Giudecca para celebrar Álvaro Siza e a sua inigualável capacidade de ler a cidade e os seus cidadãos - no Porto, em Haia, em Berlim e, ali, em Veneza; factos expressos no desenho do edifício e da futura praça do Campo di Marte, um processo que Portugal pode ajudar a concretizar, ao longo dos próximos dois anos.. O pavilhão de Portugal na Giudecca será o primeiro sinal dessa “vizinhança”.
“A obra acaba, o Pavilhão faz-se, e onde entramos nós nessa bela história?”, pensavam alguns...
Arriscamos brincar, para desanuviar o ambiente, que estávamos ali para perceber “se há vida em Marte?”...lembrando a canção seminal de Bowie (Is there life on Mars?)
Para os Giudeccinos do Campo di Marte, que a conheciam, a piada resultou... para outros talvez não... Mas logo lhes lembramos que, na verdade, era essa a vida que que queríamos retratar através das suas próprias experiências... “No pavilhão de Portugal são vocês os protagonistas, vocês e todos os vizinhos dos bairros pensados, debatidos e edificados por Álvaro Siza, desde, pelo menos, a década de 70.” E aqueles que o desejarem, terão a oportunidade de lhe dizer pessoalmente o que pensam do seu projecto... dos detalhes, dos constrangimentos e dos sonhos que não se realizaram...
“Então que venha...”, e logo duas ou três vizinhas se prontificaram a recebê-lo... O arquitecto que venha percorrer a vizinhança.
O debate foi aceso... alguns lembraram que a Bienal era afinal um símbolo da “turistificaçāo” de Veneza, receando um excesso de visitantes num lugar que se orgulha de ter ainda uma forte comunidade de venezianos autóctones... Outros afirmaram que, pelo contrario, esta seria a oportunidade de dar a conhecer esse orgulho ao resto do mundo... Ali se revelaram as duas faces contraditórias de uma Bienal global...
Propusemos que o Pavilhão de Portugal servisse, precisamente, como espaço de debate público sobre esse e outros temas: a “gentrificaçāo” social, a participação dos moradores, a integração dos “outros” – os migrantes – no seio das comunidades....Temas que Álvaro Siza conheceu bem no seu percurso de arquitecto militante.
No final, ambos concordamos que Siza haveria de ter gostado de estar naquela assembleia lembrando, certamente, os debates vividos após a Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974.
A aventura do Pavilhão de Portugal na XV Bienal de Arquitectura de Veneza começou ali, naquele Sábado, 13 de Fevereiro, às 5h da tarde... uma aventura proposta por um país que procura, ele próprio, sair de uma crise social, com um orçamento apertado para realizar esta aposta cultural, mas com a loucura suficiente para nela acreditar....
Só por causa daquela tarde de debate, no coração da Giudecca, já valeu a pena embarcar nessa aventura...
Sim, há vida em Marte!
Continuaremos acompanhando a empreitada portuguesa na Bienal de Veneza 2016. Fique atento para outras notícias que publicaremos sobre NEIGHBOURHOOD - Where Alvaro meets Aldo.